Estadão, 22/03/2012. - A redução da taxa de juros básica, a Selic, prevista para 9%
ao ano, evidencia a extorsão a que estão submetidos Estados e municípios em
razão dos contratos firmados com o governo federal no final dos anos 1990. A não correção de
distorções posteriores, causadas por mudanças na economia, levou a uma situação
injusta e a um equívoco econômico, e sua retificação não aumentaria a dívida
pública consolidada nem comprometeria a boa gestão fiscal, permitindo ainda a
elevação da taxa de investimento público, cujo baixo nível traz danos imensos
ao nosso desenvolvimento.
Esses contratos representaram uma corajosa inovação do
governo FHC. A irresponsabilidade fiscal e os juros altos tinham levado Estados
e alguns municípios a uma situação de pré-insolvência. Por isso mesmo se
aprovou, em 1997, uma lei de refinanciamento de dívidas estaduais, logo
estendida a 180 municípios. Houve uma grande operação de troca de ativos e
emissão de dívidas pelo Tesouro Nacional, que refinanciou as dívidas estaduais
e municipais com encargos financeiros então subsidiados e prazo de pagamento em
até 30 anos.
A fim de que a situação não se repetisse, aos Estados e
municípios foram proibidas a emissão de títulos de dívida mobiliária e
operações de crédito antecipando receitas orçamentárias. A Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, deu o contorno final ao novo estilo no
manejo nas finanças públicas estaduais e municipais, que ao longo do tempo foi
mostrando mais qualidade do que o próprio manejo federal. O sucesso foi tal que
governos estaduais e prefeituras passaram a ser os principais responsáveis pelo
aumento do superávit primário do setor público consolidado. Recentemente, a
imprensa internacional comentou que essa experiência brasileira é um modelo
para a União Europeia em
crise. Teria razão caso fosse a Europa uma República
federativa…
É pouco sabido que LRF não se aplica em sua plenitude às
finanças federais. Isso depende de resolução do Senado, de iniciativa do
Executivo, que nada fez. Por que os arautos da boa política fiscal ou da
transformação do Banco Central no quarto Poder da República nunca chamam a
atenção para essa falha? Um mistério. Além disso, desfrutando amplos graus de
liberdade, o governo federal executa um orçamento paralelo (via vultosos restos
a pagar de orçamentos anteriores e créditos subsidiados do BNDES ao setor privado)
e para fechar números do déficit antecipa dividendos e tributos de bancos e
empresas estatais (e não estatais) e até receitas, transformando barris de
petróleo ainda no pré-sal em transferências da Petrobrás ao Tesouro.
Voltando à lei de 1997: o indexador dos contratos de
refinanciamento a Estados e municípios foi o Índice Geral de Preços da Fundação
Getúlio Vargas, o IGP-DI. A taxa de juros foi fixada entre 6% e 9% acima do
índice, dependendo da amortização extraordinária do saldo devedor. Na época, os
juros reais chegavam a 15%, daí o subsídio. No Congresso foi introduzido um
teto para o pagamento anual dos serviços da dívida, de 13% das receitas
orçamentárias líquidas.
O IGP-DI acabou sendo um índice ruim, demasiado dependente
de choques cambiais e preços de commodities. Apesar do advento do regime de
câmbio flutuante, o governo manteve-o como superindexador das dívidas estaduais
e municipais. E as taxas de juros, encavaladas nessa supercorreção, tornaram-se
altas demais: até cinco ou seis pontos acima da Selic. Enquanto cobra 14% ou
mais das prefeituras e 12,5% de alguns Estados, o governo empresta a grandes
grupos privados, via BNDES, a juros de 4% a 5%.
Em 2010 o serviço da dívida dos Estados foi de R$ 29
bilhões, equivalentes a 62% do seu investimento total. Paga-se bastante, mas,
mesmo assim, o principal vem aumentando, como é o caso da capital paulista,
cuja dívida cresceu cerca de cinco vezes entre 2000-2011, apesar do pagamento
de R$ 16 bilhões! Se, em vez do IGP mais 9%, a dívida da cidade acompanhasse a
Selic, os encargos acumulados em 2011 seriam R$ 17 bilhões menores!
Os diagnósticos sobre essa perversidade são numerosos e
quase consensuais. Uma das propostas é óbvia: atrelar retroativamente as
dívidas à Selic. Há, além disso, uma medida simples e fácil: permitir que a
relação dívida/receita corrente líquida dos municípios seja a mesma dos
Estados, ou seja, 2, em vez de 1,2, como é hoje.
Mas, afinal, por que nada tem sido feito de prático para
eliminar essa perversidade? Um fator é a possibilidade de decisões
discricionárias, dando-se autorizações especiais para este ou aquele captar
créditos ou até receber contribuições fiscais diretas. Prática nada
republicana, para usar termo em moda.
Há, porém, um erro mais importante em curso: a ideia de que
todos os problemas federativos – dívida, royalties, Fundo de Participação dos
Estados, guerra fiscal predatória – deveriam ser resolvidos simultaneamente num
grande pacto! Bela fórmula para o imobilismo, lamentações, discursos triviais e
comissões de alto nível. A estratégia correta é a oposta: resolver um problema
de cada vez, sem excluir possíveis compensações localizadas transitórias,
começando pelo mais fácil, que é o das dívidas – a ponta do barbante para
desatar o novelo federativo.
Ex Governador e Ex Prefeito de SP |
Se isso for equacionado, os Estados e municípios teriam
acesso a mais recursos. Mas deveria exigir-se, formalmente, uma contrapartida,
que tudo fosse destinado a investimentos. Ao contrário do folclore, as esferas
estaduais e municipais, na média, são mais ágeis do que a federal para
investir. Já dão conta, aliás, de uns dois terços do total dos investimentos
governamentais no Brasil (excluindo empresas). O efeito seria altamente
positivo num país onde tais investimentos, como fração do produto interno bruto
(PIB), são dos menores do mundo – uns cinco pontos porcentuais abaixo da média
no restante da América Latina.
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